segunda-feira, 18 de julho de 2011

don't dream it's over

julia era um pássaro. com sua rebeldia, abria as asas para longe e voava.
desde pequena enfrentava os "nãos" com "por quês?" e os castigos com histórias que só contava para ela mesma. apanhava muito do seu pai, que queria colocar a filha em seu devido posto: com as bonecas, quieta e atrás da pia.
sempre quis ultrapassar o muro da casa. nos seus sonhos, corria corria corria, mas não sabia aonde chegar. engraçado essa sensação, não é ainda a de estar perdido, mas a de saber que onde estamos não é nosso lugar. quando acordava, o susto de estar no quarto, a cama, a parede pintada de rosa, as milhares de fotos sem graça penduradas num muralzinho. um levantar da cama, um joelho preguiçoso, ai manhã de sol queimando tudo que poderia ser, colocando em chamas a libertad.
julia foi ao mercado fazer compras. todo primeiro domingo do mês era a mesma história. fazer a lista, ver que o dinheiro estava faltando, entrar em desespero, mas comprar o que der. ainda escutava desaforos do pai por ter esquecido uma coisa ou outra.
(a mãe havia morrido há alguns anos. tinha certeza que morrera de tristeza, por não existir amor entre ela e o pai, mas um convívio desgastante, escravo e sem luz, sem força, sem vida.)  
na fila, uma mulher de cabelos compridos e voz suave cantava uma música: there's freedom within, there's freedom without, try to catch the deluge in a paper cup". não entendeu nada da letra, pois não sabia inglês, mas sentiu-se tonta e um pouco feliz, aquela melodia, de alguma forma, se tatuava na pele como uma partitura.
- qual o nome dessa música?
silêncio.
- oi! qual o nome dessa música, desculpe interromper...
- tá falando comigo?
- é. gostei muito do que você tá cantando.
desde aquele momento em diante, não deixaram de se falar um dia. tornaram-se muito amigas. contavam suas tormentas, seus desesperos, compartilhavam as pequenas felicidades. o que julia não sabia é que iria se apaixonar tão profundamente por aquela mulher que conheceu na fila do supermercado.
namoraram por muito tempo até que o pai descobrisse. e o que era a liberdade tornou-se razão para o enclausuramento. julia agora era um pássaro engaiolado. não podia mais ver a pessoa com quem mais se sentia feliz, livre, completa. o pai chamou psicólogos, espancava todos os dias uma parte do corpo e do amor de julia.
o quarto voltou a ser a fogueira, os sonhos cortados pelos gritos e palavrões, as fotografias todas lembravam que a realidade de agora era mais forte do que qualquer sorriso de anos atrás.

- tenho vergonha de te ter como filha. vagabunda, puta!

não ligava para uma palavra do que falava, mas ainda assim sentia umas lágrimas caírem com o orgulho machucado. sentia falta de ver filme e passear de mãos dadas pela praia à noite, dos olhares trocados, das conversas silenciosas e cúmplices, das cartas e das flores, do chocolate de aniversário, da passagem que tinham comprado para o nordeste... queria o corpo e a alma, o cheiro, a voz.
nunca mais a abraçou, sequer pôde se despedir. para onde foi, não sei. julia só conseguiu cantar aquela música novamente anos depois, quando estava fora de casa, com um emprego.
ainda que com asas queimadas no fogão, conseguiu voar. um vôo torto, mas que procurava o seu lugar.

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